░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░






░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░





░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░ ░


10.2.21

LEITURA E PRODUCAO DE TEXTO, PEDAGOGIA, CONTO DE ENIGMA, A TISANA, 10.FEV.21











EXEMPLO DE CONTO DE ENIGMA
A TISANA
LEON BLOY










Jacques sentiu-se simplesmente desprezível.

Foi odioso ficar lá no escuro,

como um espião sacrílego,

enquanto aquela mulher,

uma perfeita desconhecida para ele,

se confessava.








Mas, então, ele teria que sair imediatamente,

assim que o sacerdote

em sua sobrepeliz viesse com ela,

ou, pelo menos,

fazer um pouco de barulho

para que eles fossem advertidos

da presença de um estranho.

Agora, era muito tarde,

e a horrível indiscrição não poderia se agravar.








Desorientado,

procurando um lugar fresco

no final daquele dia escaldante,

como os tatuzinhos de jardim,

ele tivera a ideia,

dificilmente compatível com suas ideias comuns,

de entrar na antiga igreja

e sentar-se naquele canto escuro,

atrás do cnofessionário,

a sonhar,

olhando fixamente

a grande rosácea extinguindo-se.








Depois de alguns minutos,

sem saber como nem por que,

ele tornava-se uma

forte testemunha involuntária de uma confissão.

É verdade que as palavras não lhe chegavam claras

e ele só ouvia um sussurro.

Mas o diálogo no final parecia se animar.








Algumas sílabas, cá e lá, destacavam-se

emergindo do rio opaco daquela conversa penitencial,

e o jovem homem que, por milagre,

era o contrário de um indivíduo grosseiro,

temia na verdade surpreender quaisquer confisões

que não lhe eram evidentemente destinadas.








De repente, essa previsão se tornou realidade.

Um violento redemoinho parecia ocorrer.

As ondas imóveis rugiram, dividindo-se,

como para deixar surgir um monstro,

e o ouvinte, horrorizado,

escutou estas palavras proferidas com impaciência:








- Digo-vos, meu senhor,

eu coloquei veneno na tisana!

[chá de ervas para cura de doentes]








Mais nada.

A mulher, cujo rosto estava invisível,

ergueu-se do genuflexório e, silenciosamente,

desapareceu no meio da escuridão.








Quanto ao padre,

ele não se movia mais do que um morto,

e lentos minutos se pasaram

antes que ele abrisse a porta e se fosse,

com o passo pesado de um homem atordoado.








Foi preciso o carrilhão persistente

das chaves do sacristão

e a ordem de sair, por muito tempo lançada na nave,

para que o próprio Jacques se levantasse,

tão atordoado estava com aquela palavra

que ressoava nele como um clamor.






















Ele reconheceu perfeitamente a voz de sua mãe!








Oh! Impossível se enganar.

Ele chegara mesmo a reconhecer seu andar

quando a sombra da mulher estivera a dois passos dele.








Mas então o quê!

Tudo desmoronava, tudo sumia,

tudo não passava de uma brincadeira monstruosa!








Ele morava sozinho com a mãe,

que não via quase ninguém e só saía para ir à missa.

Ele se acostumara a adorá-la com toda a sua alma,

como um exemplo único de justiça e bondade.








Até onde ele podia ver no passado,

nenhum problema, nenhuma dúvida,

nenhuma marca, nenhum só desvio.

Uma bela estrada branca

a perder de vista, sob um céu claro.

A existência da pobre mulher

havia sido muito melancólica.








Depois do falecimento do marido,

morto em Champigny,

e de quam o rapaz mal se lembrava,

ela não deixara de usar luto,

ocupando-se exclusivamente

da educação de seu filho,

o qual não deixava um único dia.

Ela nunca quis mandá-lo à escola,

temendo os contatos;

ocupara-se totalmente de sua instrução,

construíra-lhe a alma com pedaços da sua.

Esse regime provocou nele

uma sensibilidade inquieta

e nervos singularmente vibrantes

que o expunham a dores ridículas,

talvez a verdadeiros perigos.








Quando chegou à adolescência,

as traquinagens previstas,

que ela não podia impedir,

tornaram-na um pouco mais triste,

sem alterar sua doçura.

Nem censuras, nem cenas silenciosas.

Ela aceitara, como tantas outras, o inevitável.








Enfim, todos falavam dela com respeito

e somente ele em todo mundo,

seu filho muito querido,

se via hoje forçado a desprezá-la

- a desprezá-la de joelhos

e com lágrimas nos olhos,

como os anjos desprezariam Deus

se Ele não cumprisse suas promessas!...








Realmente, era de enlouquecer,

era de gritr pelas ruas.

Sua mãe! Uma envenenadora!

Era insano, era um milhão de vezes absurdo,

era absolutamente impossível

e, no entanto, era verdade.

Não tinha ela mesmo declarado?

Ele poderia arrancar os cabelos.








Mas envenenadora de quem? Meu Deus!

Ele não conhecia ninguém

que morrera envenenado próximo dele.

Não era seu pai,

que recebera um tiro de metralhadora no ventre.

Não foi ele, também, que ela teria tentado matar.

Ele nunca ficara doente, nunca necessitara de tisana

e sabia que era amado.

A primeira vez que ele se atrasara à noite,

e certamente não fora por coisas decentes,

ela ficara cheia de preocupação.








Seria um fato anterior ao seu nascimento?

Seu pai se casara com ela por sua beleza,

quando ela tinha apenas vinte anos.

Este casamento teria sido

precedido de qualquer aventura

que pudesse envolver um crime?








Não, no entanto.

Aquele passado límpido lhe era conhecido,

havia sido contado centenas de vezes

e os testemunhos eram muito fiéis.

Por que essa terrível confissão?

Por que, principalmente, oh!

Por que ele precisava testemunhá-la?








Cheio de horror e desespero, ele voltou para casa.






















Sua mãe correu imediatamente para beijá-lo.








- Como você chegou em casa tarde,

meu filho querido!

E como está pálido! Será que está doente?








- Não, respondeu ele, não estou doente,

mas esse calor me cansa

e acredito que não conseguirei comer.

E você, mamãe, sente algum desconforto?

Saiu, sem dúvida, para tomar um pouco de ar fresco?

Pareceu-me tê-la visto de longe no cais.








- Eu saí, sim, mas você não pode ter me visto no cais.

Fui me confessar, o que não faz mais, acredito,

há algum tempo, menino mau.








Jacques surpreendeu-se de não ter sufocado,

de não cair para trás, fulminado,

como vira nos bons romances que lera.








Era verdade que ela havia ido se confessar!

Portanto, não estava dormindo na igreja

e aquela catástrofe abominável não era um pesadelo,

como ele, em um minuto, havia loucamente imaginado.








Ele não caiu, mas ficou muito mais pálido

e sua mãe ficou assustada.








- Que tem você, meu pequeno Jacques?, disse ela.

Você sofre,

você está escondendo alguma coisa de sua mãe.

Deveria ter mais confiança nela,

que só ama você e só tem você...

Como você me olha! Meu querido tesouro...

Mas qual é o seu problema, então? Você me assusta!...








Ela tomou-o amorosamente em seus braços.








- Escute-me bem, menino grande.

Eu não sou curiosa, você sabe, e não quero ser seu juiz.

Não me diga nada, se você não quer me dizer,

mas deixe-me cuidar de você.

Você vai para cama imediatamente.

Enquanto isso, eu prepararei uma boa refeição bem leve

que eu mesma vou trazer, não é?

E se você tiver febre esta noite, eu farei uma TISANA...








Jacques, desta vez, caiu no chão.








- Até que enfim!, suspirou ela, um pouco cansada.








Jacques teve um aneurisma de último grau

e sua mãe tinha um amante que não queria ser padrasto.








Este drama simples aconteceu, há três anos,

nos arredores de Saint-Germain-des-Près.

A casa que lhe serviu de palco

pertence a um empreiteiro de demolições.




















FONTE:

KOCHE, Vanilda Salton;

MARINELLO, Adiane Fogali.

"Ler, escrever e analisar a língua

a partir de gêneros textuais".

Rio de Janeiro: Vozes, 2019, p.56-60






Creative Commons License